domingo, 26 de junho de 2016

Artigo: Monomito – A Narratologia dos Heróis da realidade e da ficção. (1ª Parte)


  
Olá caros leitores, o artigo de hoje será um pouco diferente do viés usualmente adotado nos textos publicados pelo blog. Falarei sobre a Jornada do Herói e também apresentarei as similaridades entre os heróis da vida real e da ficção, buscando traçar um paralelo entre essas duas realidades distintas e a teoria do Monomito. Mas afinal de contas, o que é tudo isso? Acompanhem comigo no replay e preparem-se para uma viagem Junguiana através desse universo heroico e suas vertentes psicológicas.


  Antes de iniciarmos, gostaria de informar que esse artigo será dividido em duas partes, pois o assunto requer um texto extenso. Nessa primeira parte falarei sobre o conceito do monomito, suas ramificações e também sua utilização nas mais diversas mídias. A segunda parte irá aprofundar na utilização do monomito através da Narratologia sobre heróis da ficção e seu paralelo com os heróis da vida real.

  A Narratologia é o estudo das narrativas de ficção e não-ficção através de suas estruturas e elementos, e segundo historiadores, teve seu primeiro conceito idealizado pelo filósofo grego Aristóteles, que viveu aproximadamente 300 anos antes de Cristo e já sabia muito das coisas, sendo relevante em diversas áreas através dos séculos até a atualidade. Dentro da Narratologia existem diversas ramificações de estudos, como os do russo Vladimir Propp e do norte-americano Syd Field, que apesar de ser importantes por ajudar a contar uma boa história, não serão abordados nesse artigo. 

  Das ramificações da Narratologia, talvez a mais conhecida e próxima da realidade seja o monomito, ou Jornada do Herói, uma teoria narrativa estabelecida pelo antropólogo Joseph Campbell (1904-1987) na primeira parte do livro O Herói de Mil Faces (1949), intitulada "A Aventura do Herói". Baseada em uma tríade de estudos, composta pelos arquétipos de Jung, as forças inconscientes de Freud e pelos rituais de passagem de Arnold V. Gennep. A teoria do autor defende que todos os mitos da humanidade seguem uma mesma estrutura cíclica, mesmo que em graus diferentes. Mas afinal, que estrutura seria essa?

  Essa estrutura é conhecida como os 12 estágios da jornada do herói (The Writer's Journey)

 O primeiro estágio é o do mundo comum ou status quo inalterado, onde o futuro herói leva uma vida genérica, sem saber o que o futuro reserva para ele.

 O segundo estágio tem inicio quando o herói recebe o chamado da aventura ou do desafio. A mudança da vida comum é eminente.

 O terceiro estágio é a recusa inicial do chamado, onde o herói demora a aceitar o desafio, ou até mesmo nega-se a enfrentá-lo por medo ou por não se achar capaz.

 O quarto estágio é o encontro do herói com seu mentor, professor ou mesmo uma influência positiva, que o faz aceitar a aventura de sua vida, descobrindo que é capaz de vencer os obstáculos impostos pelo desafio. Nesse estágio ele pode ser treinado pelo mentor ou pelo professor, ou mesmo instigado a evoluir como pessoa, para que possa sair do senso comum.

 O quinto estágio é a passagem da vida comum para o mundo do desconhecido. Nesse ponto o herói abandona seu comodismo e aceita as incertezas da aventura, sabendo que o triunfo pode torná-lo uma pessoa única e melhor.

 O sexto estágio é composto pelo encontro com aliados ou amigos, que irão ajudar o herói na sua jornada. Aqui ele encontra os primeiros desafios e também passa por testes para evoluir como pessoa.

 O sétimo estágio é conhecido como “aproximação”. O herói começa a ter êxito sobre suas provações, subjugando o desconhecido. Ele começa a acreditar que é capaz de vencer qualquer desafio.

 O oitavo estágio é sempre traumático, pois o herói tem sua primeira crise, seja perdendo algum amigo, ou mesmo algo importante em sua vida. Somente a fé o mantém no caminho certo.

 O nono estágio é o da recompensa. Após superar a crise ou fase difícil, o herói tem algum tipo de recompensa material ou espiritual, que o impele a continuar a jornada. 

 O décimo estágio é conhecido como “caminho de volta”. Por mais longe que o herói esteja, chega o momento em que deve retornar para seu mundo, para sua casa.

 O décimo primeiro estágio é a ressurreição do herói. Ele é testado, pode enfrentar a morte ou mesmo a desesperança em si mesmo. Aqui ele deve usar tudo que aprendeu durante sua vida, para não ser reincidente nos erros já cometidos.

 O décimo segundo estágio é o do regresso com a solução. Ele retorna com algo que irá ajudar a todos que fazem parte de sua vida ou que dependem dele naquele momento.



  Analisando a Jornada do Herói e seus doze estágios, podemos notar que esses estágios podem ser divididos em três fases: Partida, Iniciação e Retorno. Nota-se também que Joseph Campbell descobriu um padrão evolutivo e cíclico nas histórias dos grandes heróis da história. Aliando isso ao vasto conhecimento das vertentes psicológicas de Carl Jung e Sigmund Freud, foi fácil (acho eu) que Campbell desenvolvesse uma linha narrativa que pode ser facilmente identificada nos mais diversos veículos de comunicação através dos tempos. Histórias em quadrinhos, romances literários, filmes e qualquer tipo de história que tenha um começo, meio e fim, invariavelmente terá como base o monomito de Joseph Campbell. Podemos citar como exemplos, as histórias de Moisés, Hércules e Jesus Cristo, e guardadas as devidas proporções, heróis como Superman e Homem-Aranha.  Todas essas histórias têm um mesmo paradigma com poucas variações. Eu poderia ir ainda mais longe nesse contexto, afinal a vida de qualquer pessoa, se analisada desse ponto de vista, em um momento ou outro passará pela Jornada do Herói.

 Mas afinal, teria Joseph Campbell inventado à roda ou apenas descoberto um padrão que até então era empregado de forma empírica pelos contadores de história? 

  Acredito que a fórmula sempre existiu, Joseph Campbell apenas teorizou sobre o assunto, pois como dito, em maior ou menor grau, todos nós passamos pelos doze estágios da Jornada do Herói. As histórias de livros, quadrinhos e filmes são apenas projeções do que somos ou gostaríamos de ser. George Lucas e sua criação máxima, a saga interplanetária Star Wars, são exemplos do uso do monomito. George Lucas não esconde de ninguém que bebeu diretamente na fonte ao utilizar os estudos de Joseph Campbell para criar a saga da família Skywalker e até mesmo já admitiu que o sucesso foi conseqüência do uso correto da teoria do Monomito. Anakin Skywalker e seu filho Luke, claramente passam pelos doze estágios durante a narrativa da saga nos filmes, livros e tudo mais. Se bem analisada, apesar de acontecer em uma galáxia muito distante, a vida da família Skywalker nada mais é que um reflexo do que pode ocorrer com qualquer núcleo familiar tradicional aqui da Terra (sem as batalhas de sabre de luz e viagens interplanetárias, obviamente). George Lucas utiliza a forma mais básica do monomito para criar a linha narrativa de suas criações e talvez isso tenha sido o grande trunfo para o sucesso da saga.


  Outra citação importante sobre a teoria de Campbell ocorre no filme “13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi”, quando um dos personagens aparece lendo o livro “O Poder do Mito”, outra obra do autor sobre o assunto. Durante a leitura, o personagem, um dos tais soldados secretos, cita uma passagem do livro para seus companheiros que diz: “Todos os deuses, todos os infernos, todos os paraísos estão dentro de você”. Essa frase ecoa durante todo o filme, mesclando com a realidade dos personagens que estão combatendo longe de casa, tentando salvar suas vidas e também de outras pessoas que dependem deles. Se analisarmos a história, veremos que os personagens passam pelos doze estágios durante todo o filme, saindo do lugar comum, evoluindo e superando, tendo perdas e vitórias. O mais curioso é que o filme é baseado em fatos reais ocorridos em 2012 na Líbia, onde um embaixador americano morreu durante um ataque de rebeldes locais. Um filme baseado em fatos reais nada mais é que a reconstituição visual de um evento ocorrido, misturando realidade e ficção. Podemos concluir então que o monomito já estava ali, em um episódio ocorrido na vida real, sendo apenas transportado para as telas do cinema, embasado na Narratologia. 


  Outro fato curioso é que não notamos nossas mudanças comportamentais com o passar do tempo. Afinal, nos dias atuais nos identificamos mais com personagens como Homem-Aranha e Homem de Ferro, do que com personagens como Superman e o Quarteto Fantástico. Todos eles passaram pela jornada do herói, então qual o motivo da oscilação dessa popularidade com o passar do tempo? 

  Talvez Joseph Campbell tenha encontrado sua resposta através dos estudos de Carl Jung e seus arquétipos, que nada mais são do que projeções de imagens psíquicas do inconsciente coletivo, que apesar de serem herdados dos nossos ancestrais, também mudam com o tempo. Hoje nos identificamos mais com o Homem-Aranha do que com o Superman, porque enquanto o primeiro é cheio de falhas e problemas pessoais, o segundo é quase divino em seu poder. 

  O Superman foi criado durante a Segunda Guerra Mundial e tornou-se um sucesso imediato por utilizar bem o conceito do monomito aliado aos anseios da época. As pessoas que consumiam quadrinhos durante aquela época desejavam o final da guerra e viam no herói a projeção do poder que gostariam de ter para dar um fim naquilo tudo. Se tivesse sido criado hoje, talvez fosse apenas mais um entre tantos a ganhar uma única edição para em seguida cair no esquecimento.  Nada contra o Superman, eu particularmente adoro suas histórias, mas é fato que sua popularidade hoje é mantida pela nostalgia e enraizamento de sua imagem em nossas mentes. O Homem-Aranha por outro lado, está cada vez mais popular, seja nos filmes (vide o recente sucesso do personagem no filme Guerra Civil), ou qualquer outra mídia. Tudo porque é um herói bem mais humano, com todos os defeitos e problemas do dia a dia de uma pessoa comum. O Homem-Aranha apesar disso tudo, continua lutando e tentando fazer o seu melhor, exatamente como a maioria das pessoas na vida real. 


  O Homem de Ferro era considerado um personagem de segundo escalão até recentemente, enquanto o Quarteto Fantástico fazia um sucesso expressivo. Atualmente os papéis inverteram, pois Tony Stark é um dos bambambans da Marvel e o Quarteto amarga fracassos seguidos nos cinemas e nos quadrinhos. Novamente acredito que seja identificação psicológica o problema. Infelizmente nos tornamos cada vez mais individualistas como Tony Stark, o alter ego do Homem de Ferro, um playboy egocêntrico e “bon vivant” e menos família, como é o conceito do Quarteto Fantástico. 


  Busquem as origens desses heróis e notarão que o conceito de monomito está presente na história de cada um deles. Então acredito que essa alternância de popularidade em nada tem a ver com a narratologia, pois mesmo os melhores escritores não conseguem retomar o sucesso do passado de alguns personagens icônicos, simplesmente porque esses heróis não estão mais alinhados com o psicológico popular. Acredito que a forma de contar histórias dificilmente mudará. O que está em constante mudança é a nossa visão com relação aos personagens envolvidos, pois eles são nosso reflexo mais profundo.

  Na segunda parte deste artigo falarei sobre a correlação do monomito com os heróis da realidade; bombeiros, policiais e militares e como estes inspiram e são inspirados pelos heróis da ficção. Então podem aguardar que vem coisa boa aí!

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